vitrais


Às 09h37, um horário bastante incomum para seus hábitos, Allan acordou. A noite havia sido longa, era a única coisa que lembrara até então. Ainda com os olhos semi-abertos, tateou o criado-mudo à procura de algo que não conseguia imaginar o que era.  Pousou a mão em um local do criado-mudo que estava mais frio, fechou os olhos e tornou a dormir. Dormiu por exatos 6 minutos e 32 segundos. Acordou espantado, desta vez, arregalando seus grandes olhos verdes. Aqueles olhos já haviam lhe rendido muitas noites inesquecíveis. A de hoje, mesmo sem saber o porquê, era uma das que seria melhor esquecer.
Abriu os olhos com a convicção do homem que decide: “desta vez eu acordo”. Olhou firme para o teto e viu as forças deste homem convicto se esvaírem, perdendo novamente a batalha para o sono. Desta vez, ao adormecer, tivera um sonho lúcido em que estava sentado em um bar conhecido e era abordado por uma loira estonteante que lhe oferecera uma bebida, perguntando por que um homem daquele tamanho estaria sozinho e aos prantos em um bar. “Puta que o pariu!” – exclamou. Indignara-se consigo mesmo ao lembrar-se desta única parte e acordara, agora de vez. Sentou-se na cama e olhou para o criado-mudo que tateara em vão há poucos minutos. Nele haviam pacotes usados de preservativo, um copo de uísque pela metade, um vaso de flores caído e sua carteira. “Caralho!” – exclamou novamente. Buscou a carteira rapidamente, abriu-a e encontrou um bilhete com um telefone e uma mensagem escrita com uma letra bastante delicada. Não se importou muito com o dinheiro, muito menos com o bilhete e continuou procurando. Seu coração batia acelerado a cada compartimento que abria e não encontrava o que procurava. Finalmente achou. Estava lá intacta, da forma como havia deixado. Respirou aliviadamente e tentou recapitular os dois últimos minutos de sua vida. “Humm... Ah, que horas são?” – Perguntou-se. Procurou seu relógio em cima do criado-mudo e não encontrou. Procurou o celular e também não encontrou. “Devo ter deixado na calça” – sugeriu. Tentou avistar sua calça próximo ao guarda-roupa que ficava próximo à sua cama. Parou por um instante e viu que não havia guarda-roupa. Assustou-se e, ainda sentado na cama, lembrou que não havia criado-mudo em seu quarto, muito menos jarros com flores. Começou a ter calafrios. “Onde diabos eu estou?” – perguntou-se novamente. Começou a imaginar que tinha mais perguntas feitas do que respostas. Fechou os olhos novamente, com força, na esperança de que a força empregada nas pálpebras fosse um passe de mágica que lhe fizesse acordar de um sonho, em um local conhecido. Balançou a cabeça, com os olhos ainda fechados, de um lado para o outro. Ficou tonto, resolveu parar. Resolveu abrir os olhos e rezar (não tinha esse costume) para que nada de mais estranho acontecesse.
Quando abriu os olhos, Allan estava com a cabeça praticamente virada na direção do seu pênis. Resolveu perguntar a ele, numa tentativa de distrair-se: “E ai, trabalhou ontem?”. Até esboçara um leve sorriso, mas o momento de descontração perante a situação nada confortável que vivera desde a hora que acordou foi quebrado quando notou que o lado interno da sua coxa estava vermelho. “Sangue!” – assustou-se. Passou a mão devagar, mas não conseguia sentir nada. Não sentiu ferimento nem relevo algum, alto ou baixo, que identificasse algo fora do normal. Olhou a ponta dos dedos e apenas alguns tons fracos de vermelho vieram. Cheirou e sentiu um agradável aroma de morango. A noite teria valido a pena, então. “E porque continuo com essa sensação de algo errado aconteceu?” – indagou-se novamente. “Mais perguntas e nada de resposta” – filosofou. Resolveu levantar para tentar descobrir aonde viera parar. A cama era baixa, não seria necessário utilizar os braços para erguer-se. E assim o fez.
Ai! – Gritou. Algo machucara seu pé quando tentava se levantar. Abaixou-se para ver o que lhe causara a dor. Ainda não conseguia ver muita coisa. Abaixou-se mais e viu alguns cacos de vidros espalhados pelo carpete, aparentavam ser de um copo de uísque. Talvez alguém desastrado, uma topada, ou quem sabe uma briga. Uma briga. Nunca se deparara com uma briga na vida. Tinha porte atlético, era alto.Fisicamente era o típico homem que não se queria enfrentar em uma luta corporal, mas nunca brigara depois de adolescente, muito menos na fase adulta.O pensamento sobre essa sua espécie de virgindade foi interrompido pela dor aguda que sentia no pé. Passou a mão vagarosamente sob o pé e sentiu que um dos cacos se alojara em seu calcanhar. Tentou puxar, mas a dor era maior que sua coragem. Resolveu procurar um banheiro para lavar-se, o sangue que saia de seu pé corrompia todo o branco e impecável carpete do quarto.
Havia duas portas naquele quarto. Uma estava aparentemente fechada e a outra, do lado oposto ao qual Allan se levantara, estava entreaberta e deixava um feixe de luz quase imperceptível escapar. “Será que tem alguém aqui?” – falou em voz baixa, para si mesmo. Foi mancando em direção à porta e viu que havia uma mancha vermelha, semelhante à de sua coxa, próximo ao trinco. “A brincadeira veio até aqui? Que garanhão, hein  Allan?” – pensou orgulhoso de si mesmo. Ao empurrar a porta, ouvira um barulho vindo do lado oposto, vindo do outro lado da porta. Algo havia caído.
- Tem alguém ai? – perguntou. Nenhum barulho, nenhum movimento, nada no chão. Não ouviu resposta, muito menos qualquer outro barulho. Tudo estava no mais perfeito silêncio. Empurrou a porta devagar, de modo que ela não rangesse, para que sua presença não fosse notada por seja lá o que estivesse naquele cômodo. A coragem que faltara para tirar o caco do calcanhar reapareceu quando Allan decidiu abrir a porta do banheiro em um só movimento. O vento que soprou após a abertura repentina da porta, fez com que a cortina que dividia o Box do resto do banheiro se levantasse e pudesse tranqüilizá-lo: não havia nada ali. “Devem ter sido ratos” – aliviou-se.
O banheiro era simples e muito bem asseado para seja lá qual fosse o lugar que estava agora. Decorado especialmente em branco, tinha alguns toques em vermelho, como a cortina, as portas do armário, a tampa do vaso sanitário e a borda do enorme espelho oval que havia acima da pia. Seu sangue combinava sadicamente com a decoração.
Mancou vagarosamente em direção ao vaso sanitário.Queria sentar-se, sentia-se tonto, exausto. A boca seca e a sede interminável denunciavam que talvez ele tivesse bebido demais. Sentou-se, cruzou as pernas como um cavalheiro, respirou fundo, mordeu os dentes com força e tentou forçar o pedaço do vidro em seu pé. Sentia até onde ele ia e não podia acreditar. Será que era um delírio causado pela dor? Pelo ângulo que via, não poderia acreditar que pudesse ser aquilo tudo. Levantou-se ainda zonzo e resolveu procurar no armário em baixo da pia se havia algum kit de primeiros socorros que pudesse usar. Sentou-se no alvo e impecável chão do banheiro de forma que pudesse ter uma melhor visão do que buscava. Nada encontrou. Teria que encarar a dor que procurava evitar. Levantou-se de costas para o espelho, e sentou-se novamente no vaso sanitário. Repetiu o que fez da primeira vez que sentara ali. Dessa vez, porém, com coragem. Urrou de dor, mas continuou. Urrou novamente, mas não poderia desistir, já sentira o pedaço do vidro se movimentar. Seu fôlego estava preso como as árvores estão presas ao chão. Até então, puxara o pedaço delicadamente para fora. Não mais agüentando aquela dor, resolveu puxar com mais força e de uma só vez. Uma lágrima escorria pelo seu rosto enquanto aquele pedaço de 4 cm deslizava sobre a hipoderme, rasgava a derme, rompia os vasos sanguíneos e finalmente chegava à epiderme encharcado de sangue. O alívio por não ter mais aquele corpo estranho fincado em si só não foi maior porque a dor que o alívio trouxeraconsigo beirava o insuportável. “Sair... ajuda... médico”- pensava.
Allan mal conseguia pensar. A dor só aumentava. Não encontrara o kit de primeiros socorros e precisava estancar o sangramento. “Minhas meias”. Rapidamente foi mancando até a porta do banheiro. O quarto estava frio, a dor que sentia o fizera recobrar os sentidos perdidos na noite passada. Avistou, mesmo com a pouca claridade do quarto, alguns Armani espalhados pelo quarto, mas nenhum Prada. Catou as peças que viu e as pôs na cama, não poderia ir a um hospital de cueca. Procurou os sapatos e não os via. Já tinha sua calça e camisa a vista. Mas faltavam os sapatos, seus preciosos Prada que de nada valeriam sem as meias compradas em um brechó. Pôs-se de joelhos e procurou os sapatos em baixo da cama na escuridão. Achou. Por um instante esqueceu que eram Prada e sujou-os de sangue na busca pelas meias. Achou-as e sentou na cama, o alvo carpete estava agorabastante manchado de sangue. Não ligou pra isso, poderia pagar, seja de quem fosse o prejuízo. Fez pressão no ferimento com uma das mãos e usou uma das meias para envolver o ferimento, de modo que o sangramento estancasse. Pouco ligou para as normas de higiene que seguira a vida toda. Sempre viu os mocinhos fazerem isso nos filmes de guerra que assistia e nunca vira nenhum deles morrer por infecção. O sangramento estava controlado, agora.
Seu plano de fuga daquele quarto desconhecido sofrera mais de meia hora de atraso. Olhou no relógio e viu que já passava das 10h00. Não havia tomado café, não lera seu jornal, não fora ao trabalho. “Caralho!” – exclamou novamente. Pegou as peças de Armani que estavam em cima da cama e começou a vesti-las. Deslizou o suave tecido da camisa pelo corpo, confirmando o perfeito encaixe do corpo ao tecido caríssimo que comprara e começou a abotoar a camisa de baixo para cima.Buscou a gravata, mas não encontrou. Resolveu vestir a calça, mas com o cuidado de não machucar o pé ou ter um esforço desnecessário que poderia recomeçar o forte sangramento. Vestiu-se, pôs a camisa por dentro da calça milimetricamente alinhada e retomou a procura pela gravata. Procurou por alguns segundos e resolveu desistir. “Deixa pra lá, não vai fazer falta”. Era a gravata que menos gostava. Pensou por alguns segundos se sairia descalço ou não. Resolveu manter a classe e calçar o outro pé do sapato, sem meia, deixando a outra meia de reserva, caso a que usava viesse a não servir mais. Calçou o sapato, buscou seus pertences no criado-mudo, assustou-se com o conforto do sapato e foi direto para a outra porta do quarto.
Seu pé latejava à medida que o outro tocava o chão, após os saltos. Evitara encostar o pé machucado ao chão para não correr o risco do sangramento voltar. Apoiou-se no trinco da porta e descansou um pouco. Voltou a sentir tontura, sua vista não parava de lhe pregar peças. Será que bebera tanto assim? Ainda não conseguira focar o pensamento na noite passada, porém lembrava-se de uma loira, do bar, de um beco... “Isso, um beco” – lembrou. O beco era “escuro”, havia muito “lixo”, “atalho”, “casa?”, “motel”, “criança chorando”, “sexo”, “carregado”. Muitos fragmentos vinham à mente a partir daquele instante e à medida que eles surgiam, a tontura aumentava. Precisava de uma aspirina.
Girou o trinco da porta e a abriu. Uma súbita claridade invadira o quarto e lhe desvendava todos os mistérios daquele lugar onde passara a última noite. O quarto possuía uma cama de casal bastante espaçosa com cobertas vermelhas, o carpete branco lhe competia ares de riqueza,havia uma espécie de armário bem grande, com várias portas que tinha por volta de um metro de altura e se erguia a partir do chão atravessando de um lado a outro da grande parede vermelha. O forro era de uma beleza sem igual, com diversos detalhes coloniais que lhe remetia aos museus que costumara visitar quando era apenas um garoto. As portas eram de madeira caracteristicamente cara e bem pesadas, dando uma espécie de segurança extra a quem precisasse ficar ali por mais tempo do que o necessário. Havia um frigobar vermelho de tema oitentista encostado do lado oposto ao que acordara. Não havia janelas. “Que tipo de pessoa não iria querer janelas em seu próprio quarto?” – decepcionou-se. Acima da cama havia uma réplica do famoso quadro Doze Girassóis de Van Gogh e acima dele, havia uma espécie de tubulação. Continuou devorando o quarto com os olhos e chegou à conclusão de que realmente se dera bem aquela noite.
O quarto e o que quer que tenha acontecido nele já eram tratados como passado por  Allan. Dera as costas e passava a contemplar o grande corredor que tinha à sua frente. A luz que invadia o quarto mostrava suas origens em um vitral gótico que se instalava cuidadosamente e propositalmente no fim do corredor. Como característica desse tipo de arquitetura, os vitrais eram grandes e coloridos proporcionando uma claridade que substituía o uso de qualquer iluminação artificial até o cair da noite. Lembrara das intermináveis aulas de educação artística, da fala mansa e cansada da professora que lhe pusera algumas vezes para fora da sala de aula por estar dormindo, da bela Joanne da qual fora namorado durante as férias de verão, do título que o elevou ao status de campeão de atletismo. Recordou-se daqueles tempos com uma espécie de saudade que lhe fizera suspirar e procurou focar no que realmente interessava naquele momento.
Abaixo do vitral, havia uma pequena e quase imperceptível mesa que ostentava um discreto vaso em um tom de azul tão claro que parecia branco. Dentro dele havia uma rosa branca, cuja inclinação do talo deixava-a visível para quem saísse do quarto de onde Allan acabara de sair.  Por uns segundos, viu-a balançar para a sua direita, dando a impressão de que o vento que vinha do lado oposto a balançava. Decidiu, então, caminhar em direção a ela com o intuito de descobrir de onde aquele vento saira. Por um instante achou que estivesse perdendo tempo. Afinal de contas, poderia ser um ventilador, um duto de ventilação qualquer, ou até mesmo o abrir e fechar de qualquer porta. Continuou firme, ignorando os pensamentos que o tornariam tolo, por não encontrar nada ao fim daquele corredor. Caminhava com bastante dificuldade devido ao ferimento, mas, mesmo assim, mantinha um ritmo firme. O olhar atento aos movimentos daquela rosa, quase lhe fizera deixar de perceber uma porta à sua esquerda. Parou por instante, ponderando se devia ou não bater. “Toc! Toc!”. Não ouviu barulho algum, assim como não ouvira a alguns minutos no banheiro do quarto de onde saira. Algo o deixara mais tranqüilo após abrir a porta do banheiro. Tinha a sensação de que realmente estava só, mas não poderia confirmar. Resolveu não ter o medo de antes e abrir a porta caso não estivesse fechada com chave, lógico. Girou a maçaneta e a empurrou para dentro, empurrando a cabeça pelo espaço que se abria à medida que a empurrava. Abriu só o suficiente para que sua cabeça conseguisse se enfiar entre a fresta, de modo que pudesse ver o que havia lá dentro.
Estava escuro. Conseguia ver que também era um quarto, mas estava tão escuro quanto o quarto do qual acabara de sair. O feixe de luz que invadiu o quarto lhe permitia ver um piso sem carpete e sem móveis que estivessem iluminados pela luz que agora penetrava o quarto com mais intensidade. À medida que empurrava a porta, a visibilidade aumentava. Vasculhou o lado esquerdo do quarto com o olhar, ainda não o tinha visto, e viu uma cama. Havia alguém nela. Alguém estava dormindo em cima daquela solitária cama. Não havia outros móveis no quarto, somente a cama. Pensou em encostar o mais próximo possível da cama sem ser notado, claro, para ter certeza de que a pessoa estava dormindo. A possibilidade de ser surpreendido por alguém que viesse de dentro do quarto fez com que pensasse. Já a possibilidade de ser surpreendido por alguém que viesse do lado de fora, de suas costas, o deixara trêmulo. “Caralho, o que eu estou fazendo?”. Continuava com a ideia fixa de inspecionar o quarto que descobrira, mas tinha que ter a certeza de que estaria seguro caso algo de ruim acontecesse. Afinal de contas, o que poderia acontecer de ruim? Alguém o surpreender e desferir vários impropérios contra sua curiosidade que beirava a falta de educação? Talvez a pessoa observada acordasse e fizesse o mesmo. Eram algumas possibilidades que em nada diminuíam seu desejo de descobrir quem eram os proprietários daquele local onde estava.
Puxou a porta cuidadosamente com a mão esquerda, fechando-a e impedindo que a luz invadisse o quarto. A escuridão, pensara, era o suficiente para não acordar seja lá quem estivesse dormindo. Mancou vagarosamente usando a parede como auxílio, até conseguir ver aquele vaso azul, quase branco, bem próximo. Por um instante admirou a beleza daquela rosa branca de pétalas macias e sem machucados, que aparentava ser muito bem tratada. Pensou de onde tirara tanto apreço pelas rosas. Balançou a cabeça de modo negativo. Virou a cabeça para a esquerda e viu uma escada que dava no andar térreo. “Finalmente! É uma casa, que alívio”. Pensou se era realmente necessário chamar alguém, já que seus planos envolviam bisbilhotar um quarto com uma pessoa que dormia. Desceu as escadas cuidadosa e vagarosamente. Descia as escadas com as mãos apoiadas nos corrimãos de modo que seu peso fosse completamente jogado para eles, assim como fazia na infância. Sem ter que apoiar o pé machucado ao chão e tendo um par de muletas seguras e improvisadas, sentiu-se seguro por um momento. Desceu o jogo de escadas e parou a dois degraus do piso firme. Olhou para a direita e viu uma sala de estar com televisão, um telefone vermelho ao lado (um modelo bem antigo, da década de 80), dois sofás, uma mesa de vidro ao centro, uma bonita janela fechada que mostrava a rua, mais uma réplica de uma grande obra de arte que não conseguia identificar o autor, e tinha quase certeza de que havia visto mais um corredor que deveria ter fim em uma cozinha, um banheiro ou, quem sabe, até em outro quarto. À sua esquerda havia uma sala de jantar com cozinha, o que eliminava a possibilidade de haver outra, bem espaçosa com diversos armários e um grande balcão em formato de “L”, que se estendia da divisória da cozinha com a sala de jantar até a beira do fogão. O espaço após o fogão era ocupado por um armário vermelho de tom claro que servia como hiato para o surgimento de outro balcão que comportava armários abaixo de si e que terminava na junção com a pia. “Ufa, estou em uma casa comum!”.
Allan respirou aliviado e pensou em seguir com seu plano de espionagem. Continuou com os passos leves e silenciosos, em direção à sala. Precisava ter certeza de que só havia duas pessoas na casa e uma delas teria, necessariamente, que ser ele.Tinha consciência de que sua visão deveria ser boa o suficiente pra ver o que quer que fosse a partir da escada, pois não poderia passar pela frente da janela e revelar sua localização para quem passasse pela rua. Tinha convicção do que queria: queria sair dali. Mas, também, tinha convicção do que não queria: não queria sair dali sem saber quem o havia levado para lá.
De cabeça baixa, acompanhando o movimento do pé machucado, caminhou até a base da escada. De lá, poderia ter uma melhor visão do corredor que havia visto só a metade, anteriormente. O que viu fora duas portas: deduziu pelo tapete na entrada, que uma delas deveria ser um banheiro social e a outra, um outro quarto.  Decidiu não ir até lá, mesmo vendo que as duas portas estavam entreabertas. Mas deveria. Resolveu voltar rapidamente para a escada, de modo que pudesse subi-la mais rápido do que havia descido. Sentiu a mesma tontura que havia sentido no quarto e começou a desconfiar que a noite passada não houvesse sido uma bebedeira qualquer. Começara a acreditar que não se dera tão bem quanto imaginava. Quando estava praticamente no fim da escada, a tontura o tentou derrubar. Conseguiu ficar firme, parado, com os dois pés fixos no chão e com as duas mãos segurando com os corrimãos com toda a força. “O que é isso?” – pensou.
Agora bem mais tonto, porém no fim da escada, apoiou-se na mesinha de canto que dava suporte ao belíssimo vaso azul e ajoelhou-se. Não conseguia ficar em pé, mas não podia parar ali, era muito arriscado. Engatinhou até a porta do quarto que espionara e a empurrou vagarosamente. Seus movimentos estavam desconexos. Por vezes passava a mão no rosto, na tentativa de retirar o véu embaçado que cobria seu rosto o impossibilitava de ter amplo controle sobre suas ações desde que chegara ao meio da escada. Era em vão. A agonia, agora, dominava seu corpo. Ainda engatinhando, adentrou o quarto e tateou o chão como se fosse um cego em busca de objetos que lhe pudessem ajudar a se levantar ou até mesmo a se mover dentro da escuridão. Mesmo que houvesse um interruptor para acender a luz, não o poderia fazer. Estava de intruso no quarto de alguém que dormia em uma casa de alguém que não conhecia, não seria lógico fazer isso. Engatinhando, encontrou algo firme no qual se apoiar. Era o pé da cama, mas pouco se importava, continuava tonto. Arrependeu-se de não ter ido embora quando teve a chance. Conseguiu se concentrar, e levantou-se de modo que pudesse ver as coisas com mais clareza, mesmo estando no escuro. Arregalou os grandes olhos verdes e tentou enxergar a pessoa que dormia. “Uma mulher” – definiu. Há uma mulher deitada na cama. Acorrentada, a mulher está acorrentada.
O medo invade sua mente. A tontura domina seu corpo. Allan não tem ideia do que fazer, como agir. Ao passo que quer ajudar a pessoa que está naquela cama a ser desamarrada, quer se ajudar a voltar à normalidade, quando poderia ver tudo claramente e andar não era uma sessão de dor e sangue. Por um instante, um pensamento pervertido lhe passa à cabeça: “e se essa moça está sob tutela de um parceiro com quem fez sexo durante a noite e está apenas descansando em um dos quartos, da mesma forma que ele estava?”. Será que estava ali pelo mesmo motivo? A partir deste momento, começava a duvidar se realmente transara na noite passada. As pistas eram bem claras pra ser qualquer coisa que não fosse sexo: a loira no bar, a mancha de batom, acordar de cueca, as bebidas, o bilhete dentro da sua carteira. “O bilhete!”. Seria impossível lê-lo agora. Allan não conseguia enxergar um palmo à sua frente. Não conseguia coordenar-se motoramente nem para ficar de pé, imagine para meter a mão no bolso da calça, sacar a carteira, abri-la, vasculha-la, encontrar o bilhete e lê-lo. Talvez, com muito esforço, pudera o fazer. Tentou. Em vão. O processo de tontura que se iniciou logo depois de abrir os olhos ao acordar, parecia que estava mais acelerado à medida que as batidas no peito de Allan se aceleravam. O nervosismo, aliado ao medo que sentia naquele momento fizera, baseado nessa teoria, com que a tontura aumentasse significativamente agora. Os pensamentos se reduziam ao primitivo em sua cabeça e nada útil se formava. Por um instante pensava que estava diante de sua esposa naquela cama. Sem poder acreditar no que passava a ver, virou a cabeça para a direita, tentando esconder uma visão que não queria ter. Sua filha. Não podia ser. Como elas poderiam ter aparecido tão rapidamente naquele quarto vazio até então? Era um delírio. Só podia ser um delírio. Allan lamentava profundamente a noite passada, não queria decepcionar as duas pessoas mais importantes de sua vida. “Eu sou um idiota! Eu sou um idiota!”, repetia Allan, recriminando-se. “Como eu pude fazer isso com elas?” – perguntava-se atônito. As lágrimas lhe escorriam os grandes olhos verdes enquanto arrancava, literalmente, os cabelos com as mãos. 
A seção de autoflagelação só cessou quando Allan sentiu seu mundo dar mais voltas do que era de costume. O padrão da tontura, agora, beirava o insuportável. Allan sentia-se enjoado. Precisava vomitar. Vomitou uma enorme poça ao pé da cama onde apoiou suas mãos. Não viu o que vomitara, mas sentiu o gosto e o odor. Já havia sentido aquele gosto de ferro algumas vezes, mas aquele fedor, aquele odor podre era novidade (das mais desagradáveis) para ele. “O que está acontecendo comigo?”. Lentamente ia sendo vencido pela fraqueza, lentamente desistia de lutar contra seu corpo. Lentamente buscou um cantinho próximo àquela cama que lhe desse um pouco de aconchego. Tocou-se no pescoço, no intuito de identificar algum sinal de febre. Seu pescoço estava em chamas. Seu corpo levara uma surra de um inimigo invisível. Deitou-se na posição fetal, denunciando sua personalidade perturbada e frágil, dostraumas de infância mal resolvidos, dos envolvimentos mesquinhos em relacionamentos sérios para as parceiras e sem sentido para ele e fechou os olhos. Continuava consciente quando ouviu a porta do quarto ranger. Abriu os olhos e virou a cabeça para a porta na tentativa de ver algo que pudesse lhe tranquilizar ou que pudesse lhe causar pavor de uma vez. Via apenas duas manchas brancas na altura onde seu olhar alcançava, quando finalmente perdeu a consciência e desmaiou, batendo a cabeça contra o piso duro daquele quarto desconhecido.

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