fome

Leonor havia feito muitos planos para a quinta-feira. Sairia do plantão ao meio-dia e iria descansar até a noite, quando acompanharia o marido em um jantar com o corretor imobiliário que conseguiria a sua tão sonhada casa. Fazia questão de descrevê-la para si mesma sempre que nela pensava. Formar-se em medicina, namorar um bom rapaz, perder sua virgindade com esse mesmo rapaz, casar-se com esse rapaz, arrumar emprego dois meses após formar-se, continuar saudável, ter um filho e ter uma casa como as de filme: três quartos, jardim florido na entrada, rodeada por cercas de madeira, varanda na parte da frente, garagem para dois carros, cozinha espaçosa e um quintal gramado com piscina e bem arborizado. Sim, ela conseguiu. Só faltava uma coisa para que ela completasse sua lista de desejos pessoais. Casou-se, formou-se, empregou-se, estava em ótimo estado de saúde, estava grávida há dois meses e estava a menos de 12hs de realizar a última conquista dessa etapa de sua vida, estava prestes a conseguir sua casa.

Porém, precisava agüentar mais algumas horas de trabalho. Suas 48 horas de plantão estavam terminando. O acompanhamento a uma menina de nove anos que sofria de câncer e estava em estado terminal era o que mais lhe tirava o sono. Era impossível não levar parte do trabalho para casa. Era impossível não se importar. Trouxera brinquedos para a distração da menina. Se o tratamento era dolorido para quem via, imagine para quem sentia. A angústia que rompia com as barreiras do seu código de ética só era quebrada pelo “entra-e-sai” de pacientes na emergência do imenso hospital. Leonor fazia questão de atender na emergência, dizia que “a emergência é o lugar onde o mais rico sangra da mesma forma que o mais pobre”, lembrava de sua adolescência quando lera sobre a danse macabre. Ao sair da sala onde visitara a paciente, caminhou por exatos 30 segundos pelo corredor que dava acesso ao saguão do hospital, ela só queria beber água, quando foi surpreendida por uma enfermeira avisando que um dos pacientes que havia dado entrada na emergência há duas horas estava aparentemente desmaiado e o ferimento pequeno que ele tinha estava bastante infeccionado.

Ao entrar no quarto, Leonor viu seu paciente deitado de lado na maca, com as costas viradas para a porta de modo que ela não pudesse ver nenhuma reação dele e nem tirar nenhuma conclusão. O paciente se chamava Donovan, tinha sido mordido por um dos criminosos na mão durante uma batida policial de rotina, relatou a morte do seu parceiro de modo estranho e com um medo incomum aos policiais e ao chegar ao hospital descrevera a dor que sentia na mão como “a maior dor que já sentiu na vida”. Donovan aparentava ser calmo, era jovem e não estava bem. Nem um pouco. Foi necessário o uso de anestesia e que uma enfermeira o segurasse para que os procedimentos de sutura fossem feitos tranquilamente, o policial se debatia na maca enquanto Leonor o suturava. O ferimento era pequeno e profundo, havia resquícios de uma baba fétida misturada ao sangue que dele jorrava. Ao redor do ferimento havia manchas arroxeadas com feridas menores, também de dentes, que lembravam pancadas bem fortes. Parecia que a pessoa que o mordera estava tentando acertar seu braço com a boca, mas não tinha coordenação motora para isso, por isso batia seus dentes contra o braço do oficial com muita força. Era um ferimento que não correspondia com a descrição dada pelo policial, porém, no estado em que ele estava a última coisa em que ele iria pensar era em mentir para o médico que iria tratar de conter sua tão aguda dor. Mesmo com toda a surpresa, Leonor prosseguiu, limpou e deu os pontos necessários no ferimento do oficial.

Leonor entreabriu a porta e, ainda do lado de fora do quarto, chamou pelo nome do seu paciente. O quarto estava escuro, lembrava-se de ter deixado todas as luzes acesas ao sair, há duas horas. Lembrara-se também de ter recomendado que o paciente descansasse por mais algum tempo, pois devido à estranheza do seu ferimento, ela preferira que ele ficasse em observação por algumas horas. Seriam horas que viriam a calhar muito bem para a reabilitação do estado de sanidade mental do oficial Donovan. Como não recebera nenhuma resposta do seu paciente, deduziu que ele estive dormindo e entrou vagarosamente no quarto, de modo que deixasse a porta fechada para que nenhum barulho de fora do quarto incomodasse o descanso de seu paciente. A situação estava ainda mais estranha. Donovan estava deitado por cima do braço suturado, com o peso do corpo todo em cima do ferimento. Mesmo com o efeito da anestesia ainda ativo aquilo deveria estar doendo à beça. A médica foi se aproximando e percebeu que o paciente estava fazendo muita força para se debater, chamou seu nome mais firmemente e torceu para que ele respondesse, seu caso era simples, não tinha porque se agravar.

Agravou-se. Donovan, na cama, se debatia timidamente sem tirar o braço ferido de baixo do corpo. A médica estava bastante incomodada com o que via e resolveu tentar virar o paciente de modo que ele retirasse sua mão dali. Segurou os ombros do oficial chamando-o pelo nome e forçando sua movimentação para trás. Sentiu um calor enorme se espalhando pelo corpo do policial. Era e não era normal. Era normal porque o ferimento deveria estar infeccionado e não era normal porque o calor que emanava de sua pele era simplesmente impressionante. Mesmo estranhando, resolveu continuar virando o paciente. Quando virou, viu o braço do paciente totalmente infeccionado no local da mordida e banhado em sangue. Da forma e na posição que entrara no quarto, não havia como ver, mas a colcha da cama onde o oficial descansava estava banhada em sangue. O oficial se contorcia incessantemente com espasmos leves, porém, pela contração visível de seus músculos e a exposição de suas veias, percebia-se que ele estava usando toda a sua força para isso. A doutora rapidamente tentou acalmá-lo, pediu socorro pelo botão de emergência que ficava na cabeceira da cama, mas foi em vão. O paciente não estava mais ali. Tentou reanimá-lo, e esbarrou no único mal irremediável. O ferimento estava fedido e num estado que teria que ser censurado caso fosse necessária sua exibição em horário nobre na televisão nacional. Desde que iniciara sua residência, era o primeiro paciente que perdia. E o perdera de modo simplesmente impossível.

Afastou-se da sala, desolada. Não entendia como, porque e nem se era realmente possível perder um paciente assim. Um ferimento à mordida, uma leve infecção, muita dor e morte em três horas. Três horas. Esse foi o tempo que um oficial de polícia levou para ver sua vida se esvair por conta de um ferimento que ele mesmo poderia cuidar em casa com um kit de primeiros socorros. Saiu andando vagarosamente, quase se arrastando, segurando-se pelas paredes do corredor do hospital. Ouvia vozes ao fundo, via pessoas pedirem sua atenção em vão, entrou na primeira porta à esquerda, trancou-a, desligou a luz e sentou-se ao chão, pôs a cabeça entre as pernas e simplesmente pensou. Continuava em estado de choque, espanto seria pouco para o estado em que Leonor se encontrava.

Do lado de fora da sala, podia ouvir a movimentação do pessoal do necrotério principal se movimentar, o corpo seria removido para autópsia. Os procedimentos teriam que ser feitos rapidamente. Ouviu quando removeram o cadáver e ensacaram-no, ouviu também uma piadinha que envolvia a morte do paciente, mulheres que, na hora do sexo, gostam de morder e a frase “me mata de tesão”. Lembrara do humor negro adquirido na adolescência e riu junto com o funcionário, que se espantou e foi ver que barulho era aquele vindo da sala. O funcionário abriu a porta e se deparou com a médica se levantando e dando um leve sorriso. Mesmo com medo, o colaborador retribuiu o sorriso com um sorriso amarelo.

Leonor transformara sua decepção consigo mesma em vontade de não mais errar. Sabia que seria chamada dentro de alguns instantes para uma reunião com a diretoria do hospital e teria que estar tranqüila para tentar explicar o inexplicável. Por isso, resolvera ir visitar a pequena Isabelle, que tanto merecia seus cuidados. Entrou no quarto onde estava a garotinha e ficou de modo divertido, contando como havia sido o seu dia até ali e fazendo-a se divertir. A garotinha, por vezes, tinha um comportamento adulto demais para sua idade e desenvolvera um instinto de sensatez e conformismo inacreditáveis. Sabia que iria morrer, sabia que não ia demorar tanto para que isso acontecesse. Sentia dores fortes há três dias e chorava muito por conta delas, sentia-se prestes a deixar seus pais tristes e a deixar uma segunda mãe tão triste quanto a consangüínea.

Enquanto limpava o chão repleto de sangue espalhado pelo ferimento do oficial recém-falecido o faxineiro procurava, dentro de si, meios para se repreender mais severamente por ter feito piada tão infame próximo a uma médica. O funcionário do necrotério, que havia subido para pegar o corpo, desviara o caminho para tomar um café e pedira para o faxineiro “não deixar aquele corpo fugir dali”. Essa também fora uma ótima piada, mas ele não riu. Ainda estava preocupado. Sua preocupação só foi superada pelo pavor quando ouviu o saco mortuário se mexer logo atrás dele. Era impressionante como o corredor havia ficado deserto de uma hora pra outra e nem o barulho dos avisos se era ouvido àquela hora. O saco “se mexeu” novamente. O faxineiro olhou para trás novamente assustado e caminhou em direção ao saco mortuário. Cutucou o corpo com o cabo do esfregão para certificar-se que nada impossível pudesse se tornar possível de uma hora pra outra. Tornou a cutucar o corpo e nada aconteceu. Virou-se, ainda apavorado e continuou a esfregar o chão banhado em sangue. Ouviu passos que vinham em sua direção e voltou ao corredor para ver o que acontecia. Era o rapaz do necrotério que voltara, despediu-se do faxineiro, pôs os fones nos ouvidos e saiu puxando a maca com o corpo do oficial. O faxineiro voltou ao serviço dentro do quarto e não percebeu o que acontecia lá fora.

O corpo do oficial Donovan, agora, estava se debatendo dentro do saco mortuário e o funcionário do necrotério não podia ouvir. Malditos fones de ouvido. Seguiu arrastando o corpo pelo corredor quando o saco se abriu e, surpreendentemente, o oficial Donovan se ergueu vivo! Não ver o que acontecia a menos de um metro de suas costas, por incrível que pareça, foi o que mais aliviou a cena que se sucedera. Donovan ergueu-se e cravou uma das mãos no ombro esquerdo e a outra diretamente no rosto do funcionário, e com uma força descomunal, desferiu várias mordidas entre o ombro e o pescoço do rapaz. O rapaz, ao ser tocado, sentiu um calor e uma dor terrível. Estava completamente fora de si quando virou o rosto para ver o que estava acontecendo. Notou um estranho mordendo seu pescoço e sentiu sua cabeça pender vagarosa e involuntariamente para o lado direito. A mão de Donovan já não se apoiara na cabeça do rapaz e mesmo assim ela continuava caindo para o lado direito enquanto sua visão escurecia mais a cada segundo que se passava. Quando ele finalmente deixou de sentir dor, o que se ouviu foram o estalido da coluna se rompendo e a cabeça, sendo separada do corpo. Donovan fazia um barulho temeroso enquanto dilacerava sua vítima ao chão. De cócoras em frente à vítima, Donovan rasgava sua carne como quem rasga papel. A força empregada em cada movimento letal era tanta que até pedaços do corpo de Donovan se misturavam ao da sua vítima e, por vezes, ele mordia as próprias mãos numa gana absurda.

O faxineiro estava terminando de limpar o quarto onde Donovan supostamente morrera quando, acidentalmente, derrubou o suporte para soro que ficava ao lado de sua cama. O barulho foi intenso, sua sorte era que não havia mais ninguém por perto para ouvir. Ao menos era assim que pensava. Donovan, do fim do corredor, ouvira. E com um impulso, partiu com uma velocidade incrível pelo corredor em busca do barulho que escutara. Enquanto corria, Donovan escorregava e caia espalhando sangue por todo o corredor. Quando o faxineiro ouviu os passos, caminhou vagarosamente em direção à porta para ver o que acontecia e foi surpreendido por Donovan pulando ferozmente em cima dele e o agarrando pela cintura, de forma que ele não tivesse ação para escapar do ataque. Donovan, mais uma vez, saciaria sua vontade momentânea de comer e destruir. Diferente do que havia feito com o funcionário do necrotério, Donovan sentou em cima do faxineiro e começou a mordê-lo pelo rosto, desfigurando-o em questão de segundos, e avançou para a barriga, deixando suas vísceras à mostra. Nem os fortes socos desferidos pelo faxineiro e as pancadas dadas usando o balde de ferro onde punha água, faziam Donovan parar de devorar a carne do faxineiro. A delícia daquela especiaria que acabara de devorar era tão intensa que ele só pensava, se é que pensava, em comer mais e mais.

Donovan, ao terminar sua macabra refeição, olhou para um lado e para o outro. Ouviu como nunca ouvira antes. Não falava, só rosnava. Usou seu olfato, agora bastante aguçado, em busca de novas presas. Era difícil imaginar, mas à primeira vista, Donovan não era nada além de um animal com os instintos à flor da pele, não era nada além de uma máquina de matar e devorar. Por isso, saindo em busca de sua próxima vítima, caminhou lentamente à espera de algum dos seus sentidos mostrarem-lhe onde poderia saciar suas vontades. A passos lentos, quase arrastados, Donovan caminhou para fora do corredor e o barulho que ouvia era cada vez maior, sua euforia foi maior que o extinto de caçador e ele saiu em disparada em direção a uma presa que estava parada, toda vestida de branco, aparentemente gesticulando em sua direção. Saltou em cima de sua nova presa, sem perder de vista todas as outras presas em potencial que se encontravam ali, e mordeu-a ferozmente enquanto as demais presas corriam desesperadas tentando fugir do insaciável predador.

Leonor ouviu a gritaria do quarto de Isabelle e pediu que a garotinha não se preocupasse, pois ela averiguaria o que estava acontecendo e já voltaria para brincarem mais. Despediu-se de Isabelle e trancou a porta. De costas, olhando pelo vidro da porta, deu outro tchau para a menina e, quando virou, deu de cara com o paciente que dera como morto há alguns minutos. A cena era a mais estarrecedora possível: um homem dado como morto há pouco tempo estava de cócoras à sua frente devorando as vísceras de uma enfermeira…

Continua…

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