Diário pessoal do oficial Clint Donovan

23 de Fevereiro de 2011

Talvez a minha posição não seja a mais favorável para eu estar escrevendo tão deliberadamente, mas precisava compartilhar o dia de hoje com alguém que não me julgasse e pudesse me ler com o pensamento partindo do zero. O primeiro ferimento em combate você nunca esquece, e isso tudo me fez lembrar todo o caminho que eu trilhei até aqui. É meio constrangedor, para quem lê, ter que se introduzir e esperar eu contar toda a minha vida até chegar na data de hoje mas espero que vocês entendam o porquê das atitudes que tomei hoje.

Cresci, como muitos dos meus companheiros, vendo meu pai vestir o uniforme, apertando o coturno e prendendo a pistola na cintura para mais um dia de trabalho. Antes de sair, lembro-me que ele sussurrava três palavras. Durante muito tempo só consegui entender uma: respeito (havia um motivo. Sempre que eu o desafiava, na infância, ele me ensinava o que era respeito e repetia tanto essa palavra que eu acabei decorando-a). Quanto às outras duas, só vim me ater ao que significavam aos 14 anos, época em que meu pai me chamou e disse que eu estava pronto para aprender. Durante alguns anos, não sabia muito bem o que eu estava aprendendo, mas sabia que ia servir. Treinei tiro-ao-alvo, inconscientemente fazia corrida em dois turnos, aos fins de semana pedalava por 2 horas ao lado dele e, nos momentos de relaxamento, meu pai me fazia algumas perguntas fora do comum, envolvendo ética, bom comportamento e coisas do gênero. Às vezes pensava que eram testes que ele fazia para saber se tinha me dado uma boa criação.

Aos 16 anos, meu pai me levou para o campo de treinamento do seu trabalho. O local era o mais aprazível possível, se mostrava bem acolhedor e era um convite aos aficionados por exercícios físicos. Lá, eu treinei por mais cinco anos até que descobri para o quê estava sendo treinado. Toda aquela vivência no ambiente policial me fez querer continuar naquele ambiente por toda a minha vida. Tornei-me um policial. Só a partir daí pude saber quais eram as três palavras sussurradas por meu pai todos os dias antes de ir às ruas: Cortesia, Profissionalismo e Respeito. As três palavras refletem bastante o que a nossa polícia quer passar à população. Com o objetivo final de bem servir, tratamos toda a população como carente de segurança e sempre queremos ser o bem maior de cada cidadão.

Durante todos os meus dias de treinamento, sempre desejei vivenciar e experienciar algo como o que vivi hoje com um parceiro, talvez com menos movimentação. Começar uma ronda cedo, atender a chamados, frustrar-me por ver que a tranqüilidade das ruas de nossa cidade [ainda bem] não nos permite trabalhar como vemos nos filmes policiais, ouvir o barulho da sirene e ver que o giroscópio estava ligado, atender a ocorrências mais sérias… Sempre gostei do meu temperamento, de não precisar me exaltar para expor um ponto de vista e, por conseqüência, desde que fiz minha primeira ronda, sempre torci para nunca ter que sacar a arma em uma abordagem. Mas hoje foi necessário.

A rota de hoje tinha tudo para ter sido feita na maior tranqüilidade possível em um bairro calmo, com casas pequenas e de vizinhança tranqüila. Connor, meu parceiro, ao contrário de mim, sempre foi muito afoito e “gostava de grandes emoções” como ele mesmo gostava de deixar bem claro. Titubeei quando o Sargento optou por nos pôr juntos em ronda por dois meses. Porém, não poderia fazer nada, afinal de contas, devo seguir ordens. Ao invés de completar a rota como designado pelo sargento, Connor optou por mudar a rota e percorrer um caminho totalmente diferente do delimitado. Saímos da rota, mesmo sem meu consentimento e nada encontramos, como era esperado por mim. Nenhuma ocorrência, nenhum barulho estranho, nada. Ao passarmos por um conjunto de pequenas casas escutamos algo fora do normal para o padrão encontrado por nós ali. Em uma das casas havia uma movimentação estranha, um barulho de objetos sendo derrubados, quebrados, arremessados. Avisei ao Connor que iria descer para olhar, mas ele, todo cheio de si, me impediu dizendo que ali não havia nada e que não devia ser nada demais e, inclusive, conhecia uma música do Megadeth que começava daquele jeito. Os minutos que se sucederam logo após nós termos passado pela casa foram de pura agonia para mim. Sentia que estava faltando com meu lema, principalmente na parte da cortesia e do profissionalismo. Após, mais ou menos, uns quinze minutos interrompi a nossa busca incessante por um crime que insistia em não vir e resolvi dar a volta e averiguar a situação na casa com atividade suspeita. Quando finalmente chegamos, a porta estava aberta e o carpete que ficava após o portal estava levantado e manchado. Ao olharmos rapidamente para o interior da casa, vimos os objetos quebrados e marcas de sangue na parede. Havia sinal de luta.

Resolvi entrar e ter certeza do que estava vendo. Mas fui impedido pelo Valente Connor. Disse-me que entraria enquanto eu chamaria reforços pela viatura e, se ouvisse algo estranho, entrasse para dar cobertura a ele. Foi o que fiz. Caminhei em direção a viatura enquanto Connor entrava na casa que, a essa altura, já estava escura. O procedimento padrão é, em ambientes escuros, ir com a lanterna de mão. Mas meu parceiro detestava os procedimentos padrão. Enquanto procurava as lanternas dentro do carro, escutei um grito estridente vindo de dentro da casa seguido de um barulho forte e grave, como se algo grande tivesse caído. Corri com as lanternas na mão e, pela falta de experiência, nem tive tempo de sacar minha pistola. Entrei batendo a porta e anunciando que era a polícia e avisando que o reforço já estava a caminho e que em menos de 5 minutos eles já estariam cercados. Seja lá o quê ou quantos estivessem dentro daquela pequena casa.

Ao entrar na casa, senti que estava pisando em algo líquido que anulava o atrito entre meu coturno e o carpete. Chamei pelo nome de Connor e não houve resposta. Quando virei a luz da lanterna para ver o que era, vi que era sangue. Muito sangue. Com pedaços do que julgo ser pele, músculo, carne. Grandes fatias de carne. Não como fatias compradas em supermercados, e sim fatias com cortes incertos, partes finas atreladas a partes mais grossas. Parecia que tinham sido arrancadas à mão. Andei mais um pouco e baixei o tom de voz ao chamar, pela segunda vez, meu parceiro. “Connor”. Novamente sem resposta. A partir daqui, não sei se vou ter dedos para terminar de descrever o que vi. Mas farei todos os esforços possíveis. Ainda é muito recente e a ficha só caiu agora que comecei a contar. É mais do que imaginava ver em campo de atuação. Sempre encarei a morte como um fato natural e uma conseqüência no meu trabalho. Com isso, não quero dizer que seja bom. Somente natural. Pode ser que sim e pode ser que não.

Continuei andando a passos curtos para não chamar a atenção, destravei minha pistola (eu sei, deveria ter feito isso há mais tempo) e prossegui. Acendi a luz da lanterna e mirei os quatro cantos da casa. À esquerda, vi manchas de sangue espalhadas pela parede, como se alguém estivesse completamente ensangüentado e tivesse tentando se limpar na parede. No chão dessa mesma parede vi mais pedaços de carne, uma bolsa de mulher aberta com os pertences espalhados pelo chão e uma marca grande e extensa de sangue que teria sido arrastada pelo chão e entrava no único corredor da casa. Meu coração acelerou, mas sabia que deveria entrar ali a qualquer custo. Com a arma em punho fui clareando o chão e me aproximando do corredor. Estava dando passos mais firmes quando iluminei o último canto que ligava a sala do corredor e vi uma mão com os dedos dobrados e completamente duros, como quem tenta se agarrar ao chão cavando uma fenda com as próprias mãos, as pontas dos dedos rasgadas e as unhas arrancadas, mostrando sinais de uma luta intensa que não deve ter terminado bem. Era uma mão de mulher, havia uma aliança nela. Acompanho o resto do corpo procurando por outros sinais de luta e sou surpreendido por uma parte do corpo da mulher. Na verdade, sou surpreendido pela falta de uma parte do corpo da mulher. Ela está separada de suas pernas. A partir da barriga, já não existe mais corpo, é uma mulher pela metade. Lembro da minha infância quando torcia para que o truque saísse errado e a mulher fosse realmente partida ao meio. Agora já não era mágica. Era verdade e não era tão agradável quanto imaginava. Os cortes devem ter sido feitos por um objeto sem lâmina, pois nada explica a irregularidade dos pedaços de corpo e vísceras espalhados ao longo do corredor.

Resolvi não mais bancar o valente, como meu parceiro havia feito e já não respondia aos meus chamados, e decidi esperar o reforço do lado de fora da casa. Porém, no momento em que virava para encaminhar-me até a porta, esbarrei na cabeça da vítima e, pelo susto, deixei a lanterna cair fazendo um barulho bem alto para os padrões de silêncio que eu estava impondo desde que havia entrado na casa. Tateei o chão em busca da lanterna e esbarrei no braço da vítima. Não consigo compreender mas, mesmo após o óbito, a vítima ainda estava quente. Só que o calor que emanava de seu corpo era um calor febril, intensamente febril. Parecia que a vítima estava com muito mais que 40º de febre. Porém, estava inerte. Resolvi sentir os batimentos de seu pulso e não consegui nenhuma resposta. Passei, então, para o peito. Colei o ouvido no colo da vítima a fim de escutar algum batimento, por mínimo que seja. Mantive-me inerte, como a vítima, por alguns segundos quando, em meio à concentração, escuto passos arrastados seguidos de um grunhido de dor vindo de uma porta que estava entreaberta à minha esquerda. Viro a lanterna, que já estava em mãos, e vejo um homem com o rosto totalmente pálido e todo ensangüentado vindo em minha direção. Os grunhidos vinham dele e não sei bem o que ele tentava dizer, mas sei que ele estava debilitado, pois caminhava se arrastando a passos curtos e estava tão quente quanto a vítima deitada no chão. Mantive o tom de voz baixo para que só ele pudesse me ouvir e o chamei para ir para fora da casa e nos salvar do perigo iminente que rondava a casa. Perguntei pelo meu parceiro e ele nada respondeu. Perguntei pelo suposto assassino e ele, da mesma forma, só grunhiu palavras inintendíveis. A partir daí, já estava ficando confuso. Havia uma cena de crime bárbaro: uma casa com porta aberta e a casa toda suja de sangue, uma mulher sem a metade do corpo, um parceiro desaparecido e um homem agonizando, aparentemente também vítima, que não conseguia falar nada a não ser grunhir.

Acelerei o passo junto ao meu tutelado, dava passos largos na frente sem olhar para trás e nem percebia que ele estava se arrastando, literalmente. Parei para perguntar se ele precisava de auxílio para sair da casa e ele nada respondeu, só grunhiu outra vez, mas não parava de caminhar em minha direção. Estava começando a me sentir mal por não tomar uma iniciativa e tirá-lo dali com minhas próprias forças. E foi o que fiz. Encostei-me ao homem e abaixei-me para pegá-lo no colo e levá-lo para fora. Ainda não entendo muito bem o que houve, só lembro-me de ele ter me agarrado com uma força descomunal e começar a morder meu pescoço como quem morde um pedaço de carne. Consegui escapar, sangrando bastante, e conclui que ele poderia ser o suposto assassino da moça que estava deitada no corredor. Caminhei em direção à porta da rua e fui seguido lentamente por ele. Pedi que se afastasse, caso contrário seria obrigado a atirar. Ele não parou. Atirei em sua perna esquerda para retardar seus passos. Foi em vão, ele continuava a andar. Atirei na outra perna e foi como se eu tivesse dado-lhe mais gás para sua incessante busca. Ele continuava se arrastando até que chegou bem próximo a mim e tentou me imobilizar pondo uma das mãos sobre meu rosto de modo que a força machucasse minha face e a outra empurrava meu ombro para baixo, fazendo com que meu pescoço se mantivesse ao alcance de seus dentes. Mais uma vez consegui escapar, dessa vez, sem ser mordido e atirei em sua cabeça.

Deve-se evitar a execução dos bandidos, o envolvido deve ter a chance de ser julgado perante a lei. É isso que nos é instruído. Tentei de todas as formas. Me feri, apanhei, fui empurrado, fui mordido. Mas não consegui evitar, tive que executar. Só tenho dois meses na polícia, não queria que fosse assim. Vou ficar afastado do departamento por dois meses fazendo recuperação psicológica. Estou no hospital há mais ou menos três horas. Três duplas de outros policiais e um homem engravatado vieram me perguntar o que havia acontecido e eu contei tudo o que contei a vocês agora. Alguns disseram que foi legítima defesa, outros duvidaram que uma pessoa normal pudesse continuar andando após levar dois tiros nas duas pernas e um me acusou de triplo homicídio. Disseram que o corpo de Connor estava desfigurado, com ferimento a bala no braço esquerdo e muitas mordidas no rosto e no estômago. A verdade é que só o homem engravatado acreditou em mim e me perguntou para qual necrotério eu achava que haviam levado os corpos. Eu disse o nome do primeiro que lembrei, mas a verdade é que tanto faz, estou ardendo de febre, meu corpo está dolorido e parece que cada osso meu foi esmagado por um bloco de concreto.


 Data e hora da terceira e quarta infecções: 23 de Fevereiro de 2011, 21:00 e 21:14hs.

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