onde o existencialismo não tem vez

Eu, tu, ele, enfim, nós… Todos carregamos o fardo eterno da decisão. O que você faz subjuga o “para quê” você foi feito. O homem é livre para escolher o que quiser, pois cada um carrega seu próprio fardo. Todas as suas escolhas afetam a humanidade.

Há um imenso e interminável leque de situações em que você escolhe. Você escolhe pensar, você escolhe dar um passo, você escolhe falar, você escolhe levantar a mão para pedir que o ônibus pare, você escolhe namorar, você escolhe casar, você escolhe ter filhos, você escolhe viver e você escolhe morrer. Ao menos, era o que pensavam dois dos maiores ícones da filosofia existencialista francesa e dois dos maiores inspiradores da vida de Abraham.

Abraham analisou. Abraham reviu. Abraham pensou. Abraham repensou tudo o que havia feito desde que, do útero da sua mãe, havia sido expelido. Abraham chorou. Abraham teve medo. Abraham decidiu. Abraham se preparou. Abraham, novamente, chorou. Abraham desistiu.

A morte seria o fim.

Para Abraham, a morte, era sim o fim de tudo. Ateu convicto desde os onze anos de idade, sempre enfrentou os dizeres e desdizeres da sociedade que não o aceitava como ele era. Sofreu (por muitos outros motivos) calado por muito tempo até perceber que não precisava sofrer. Suas ações eram suas ações e de mais ninguém. Era ele quem as comandava, era ele quem as praticava. Formou-se em medicina, como “ordenaram” os olhares e os dogmas de seu pai. Contraiu matrimônio com a escolha que menos se identificava como, novamente, “ordenaram” os olhares e os dogmas de seu pai. Descobriu que era infértil aos trinta anos. Descobriu que era traído aos trinta e dois.

Sua fachada social materialmente rica disfarçava bem a sua pobreza de personalidade. Sua escassez de felicidade. Sua vontade de não mais viver. Quando, aos trinta, decidiu sair do aconchegante calor que envolvia seu escritório para o mórbido frio do necrotério, ouviu o que pareciam rosnados inquietos de sua esposa. Especializou-se e, como era costume, virou o melhor. Sempre pensou: “a diferença entre mim e meus novos pacientes é a atividade cardíaca e cerebral”. Sentia-se morto, sentia-se menos vivo até que o paciente mais morto. Convivendo com a angústia de uma vida sem sentido e com quase todas as possibilidades de morte, Abraham pensou em dar fim ao que lhe atormentava. Pensou inúmeras vezes em dar a si próprio um fim justo, um fim livre de dúvidas. Um fim seu.

Tratava de um indigente quando foi surpreendido por Hooke, seu assistente, chamando-o para ver uma morte que, talvez, ainda não houvesse visto. Eram três corpos. Havia grandes feridas nos três corpos. Estavam quentes, febris para falar a verdade. Em um, dos corpos, as entranhas estavam expostas. Era o corpo de um policial. Em outro, havia uma ferida feita por uma mordida que, pela marca, não era de um ser humano e seu estado de decomposição era visivelmente anterior ao dos outros dois, além do fato de possuir um ferimento feito por bala na cabeça. O terceiro corpo era de uma mulher com um rasgo extenso de, mais ou menos, uns dez centímetros que começava na testa e se estendia até o meio de sua cabeça, deixando o couro cabeludo ainda pendurado em sua cabeça. A vista que Abraham tinha à sua frente era a mais surreal possível. Eram três corpos com os ferimentos mais bizarros possíveis. Parecia que duas pessoas estavam tentando devorar-se entre si, quando um policial foi acionado, tentou intervir e foi devorado juntamente com os outros dois. Nada era normal. Muito menos sua felicidade ao ver três corpos esfacelados em seus negros sacos mortuários.

Abraham, com a ajuda de Hooke, tirou os corpos dos sacos e os pôs nas mesas. O trabalho teria que começar imediatamente. Juntamente com o “material” veio o aviso de pressa, pois o chefe de polícia precisaria ver os corpos e saber a causa da morte dos três envolvidos em menos de cinco horas. Ignorando todas as pressões, Abraham trabalhou ininterruptamente durante as cinco horas que se seguiram. Seis horas se passaram e o chefe de polícia ainda não havia chegado. Abraham estava exausto, mas já havia feito todos os procedimentos de autópsia e perícia necessários para dar fim ao mistério. Como padrão, necessitava redigir seu relatório. Nunca precisara escrever algo tão bizarro e pavoroso. Hooke havia deixado a sala há quinze minutos, precisava fumar um cigarro e alimentar seu vício com a desculpa de que o estado dos corpos o deixara mais nervoso. O que é bem verdade, até. Hooke, assim como Abraham, já havia visto de tudo até hoje. Porém, o estado dos corpos, a violência com a qual os pedaços foram dilacerados e o intenso calor em que os corpos estavam o deixava inquieto e perplexo.

Hooke acendeu seu cigarro ainda dentro das instalações. Passou pelo segurança e o porteiro que lia revistas e via TV na recepção e nem deram bola para o assistente. Ao sair, viu que chovia forte e a noite estava mais calma que de costume. Fumava, sentia a sensação de prazer estimulada pela nicotina e pensava no quanto queria estar em casa vendo TV sem se preocupar com a hora de dormir. Mas, por verdadeira infelicidade, estava lá e mal sabia a que horas poderia ir pra casa. Talvez nunca mais voltasse.

Passados quinze minutos, Hooke resolveu voltar para dentro do laboratório. O caminho, da porta principal à sala onde estava trabalhando junto ao Dr. Abraham, tinha por volta de uns 10 metros e era separado somente por uma porta dupla com duas pequenas janelas espelhadas que davam acesso ao pequeno saguão que continha outras duas portas: a da sala de aparelhagem cirúrgica e a de autópsia. Através desse caminho havia somente a pequena sala de recepção onde um homem, que raramente estava lá, descansava ao som de música clássica em um radinho de pilhas e tentava resolver uma palavra-cruzada. Hooke cumprimentou o “homem que raramente estava lá” (em dois anos, Hooke nunca conversara com ele, não sabia nem o seu nome), que o olhou de canto e acenou com os olhos, passou pela porta divisória e deparou-se com muito sangue ao chão. O sangue tinha a nascente dentro da sala de autópsia onde o Dr. Abraham trabalhava. Certa vez havia acontecido de o Dr. Abraham ter esbarrado em um pote de drenagem sanguínea e ter sujado toda a sala de sangue. Não era tão aceitável mas, como [quase] tudo na vida, era possível de acontecer.

Hooke hesitou. Hooke parou respirou e resolveu, antes de entrar, chamar pelo Dr. Abraham. Ele não respondeu, devia estar concentrado no relatório que escrevia ou envergonhado por ter derrubado novamente uma grande quantidade de sangue no chão. Era compreensível que não respondesse. Hooke perguntou se estava tudo bem e se o seu chefe queria ajuda. Ele nada respondeu. Perguntou, então, se o chefe ainda precisaria dele. Novamente, nada. Avisou que estaria disponível no celular caso fosse necessária sua presença e saiu a passos lentos da ante-sala. Antes de ir ainda tentou olhar pelo vidro da porta da sala de autópsia, mas não conseguiu ver nada. Todas as luzes estavam apagadas, com exceção da luz do abajur da escrivaninha de Dr. Abraham. Ignorando este fato, Hooke se virou e continuou andando, agora, pelo corredor vazio.

Uma estranha atmosfera tomava conta do necrotério, o clima de calmaria já existente ali estava bem maior que de costume e só era quebrado pelo barulho da TV do “homem que raramente estava lá”. Hooke sempre desconfiara da sanidade mental de Dr. Abraham. Por vezes o havia visto chorar. Sempre notou a forma um tanto quanto doentia com que, quando sozinho, o Doutor olhava para seus aparelhos de corte antes de enfiar nos cadáveres. Já o havia visto até conversando com os instrumentos cirúrgicos. No começo da semana, Hooke notou uma marca no pescoço do médico e quando perguntou o que havia acontecido, bem indiscretamente, recebeu um “não foi nada” como resposta. Seria o Dr. Abraham um suicida? Talvez tivesse problemas de violência doméstica? Ou gostava de um sexo violento com sua bela esposa? A verdade é que ele pensou em tudo. Uma das alternativas era a correta. Ignorou todos os pensamentos, menos o que reafirmava o estado insano de Dr. Abraham, e continuou seguindo em frente. Quando ficou ao lado da recepção, olhou para a cadeira vazia e viu que o homem, como de costume, não estava lá. Parou um pouco. Esperou. O quê? Nem ele sabia.

Hooke olhou para trás assustado, como se houvesse visto alguém passar próximo a ele. A essa altura estava a menos de dois metros da porta de entrada e saída, bastava ter forças para ligar o botão do “quem se importa?” e voltar para casa assistir seus Talk-Shows mas, novamente, hesitou. Perguntou se havia alguém ali e ninguém respondeu. Afinal de contas, estava na sala do “homem que raramente estava lá”. Lembrou desse fato, riu de si mesmo e num ato de auto-flagelo, estapeou a face. Seu momento de descontração foi quebrado por dois fatos isolados e, aparentemente, sem ligação alguma entre si: o primeiro foi ter escutado o barulho do rádio do porteiro que vinha do balcão bem a sua frente e o outro foi ter-se lembrado de que suas chaves haviam ficado na entrada da sala, em cima do criado-mudo que ficava na entrada da porta. Sentiu estar sendo observado. Um vento frio soprou sua nuca, fazendo-o arrepiar-se. Rapidamente caminhou em direção à sala de autópsia. Suas chaves, àquela hora, eram seu maior problema. Sentiu medo daquele ambiente pela primeira vez.

Dirigiu-se à porta dupla que separava o corredor da ante-sala e viu-se novamente em frente à grande poça de sangue que ainda estava intacta, para sua surpresa. Pisou na poça e, quando segurou a maçaneta da porta da sala de autópsia, escutou um barulho vindo lá de dentro. Parecia que os instrumentos estavam caindo das prateleiras. Parecia que as prateleiras estavam caindo. Mesclado ao som estridente dos objetos de metal caindo ao chão havia, agora, o som de passos arrastados. Não sabia o que se passava dentro da sala. Preferiu entreabrir a porta e tatear o móvel a ter de descobrir de onde vinham os barulhos. Tateou e encontrou. Foi retirando a mão da abertura que havia feito, segurando sua chave, quando escutou o Dr. Abraham murmurar alguma coisa. Sem entender o que havia escutado, Hooke confirmou dizendo “sim” e retirou seu braço da fenda rapidamente. Alguma coisa estava mais errada que o normal.

Hooke caminhou em direção à saída. Teve a ação espontânea de olhar para a cabine da recepção, mas mudou a vista num piscar de olhos. Fez bem. Se tivesse procurado mais, teria visto o cadáver do homem da recepção com as entranhas de fora, jogadas logo atrás de sua cadeira. Fez bem em não ter puxado mais conversa com o Dr. Abraham àquela hora. Fez bem em ser viciado em nicotina, fez bem por ser relapso e demorar mais que o necessário para se fumar um cigarro. Fez bem em não insistir em conversas.

Fez bem por não ter escutado absolutamente nada do que se passou dentro do necrotério durante aqueles benditos quinze minutos, quando deu a pausa para fumar. Caso voltasse, teria visto uma carnificina sem precedentes cometida por uma pessoa que estava morta há quase um dia. Dr. Abraham havia terminado seus trabalhos, esperado o chefe de polícia que não havia aparecido e foi fazer seu relatório. Assustou-se com um espasmo do cadáver do homem que estava na mesa cirúrgica mais próxima a ele. Assustou-se, mas não temeu, era normal. Continuou concentrado no relatório. Lá ele relatava o quão estranhas haviam sido as mortes dos três, relatava a estranheza da temperatura corporal dos três corpos e a surpresa por ter visto que um dos homens, identificado como Yussuf, havia morrido por conta da ferida provocada aparentemente por uma mordida e não pelo tiro recebido na cabeça. Relatou também que, durante a perícia no corpo dos outros dois cadáveres, havia encontrado pedaços de tecido e até dentes do próprio Yussuf. Relatou também que o ferimento à bala sofrido pelo policial, teria sido disparado por ele mesmo, já que a paciente também estava morta. Relatou, também, que Yussuf havia estraçalhado a cabeça da paciente com os próprios dentes e que, em seu intestino, havia grande quantidade de tecido e massa visceral dos outros dois pacientes. Mas como ele poderia ter feito isso se já estava morto? Dr. Abraham iria descobrir a resposta para essa última pergunta, dois minutos após escrever suas últimas palavras no relatório.

O cadáver do policial teve mais outro espasmo. Dessa vez, mais forte que o primeiro, o fez cair da mesa cirúrgica. Abraham jamais havia visto cena como essa, parecia que o corpo havia renascido e não queria ficar naquela mesa fria. Abraham tentou levantar o corpo e pô-lo de volta à mesa, mas suas tentativas eram em vão. O corpo, agora, ardia em febre. Mais do que quando havia chegado ao necrotério. Estranhou, mas continuou tentando pôr o cadáver em cima da mesa. Quando finalmente conseguia, viu o corpo da mulher cair da mesma forma. Ergueu o policial e partiu para erguer o esguio corpo da mulher. Cansou. Resolveu ir à porta chamar Hooke para ajudá-lo, mas foi surpreendido por uma nova queda. Desta vez eram os dois corpos que haviam caído, misteriosamente, em pé. Abraham jamais acreditara na possibilidade de vida após a morte. Tampouco na de fome após a morte. Mas essa era a feição dos dois corpos, parecia que estavam com muita fome.

Os dois corpos estavam vivos! Em pé! E com olhares estarrecedores. Abraham ficou em estado de choque, não conseguia se mover. Os dois corpos vieram andando e grunhindo em sua direção, seu corpo estava imóvel. Os dois mortos entrelaçaram os braços pelo seu corpo, aqueles longos e quentíssimos braços que ele analisara há horas atrás se transformaram em um maquinário violento que tinha a função de repuxar sua carne com a intenção de rasgá-la. Um dos corpos o agarrou com muita força e foi morder seu rosto. A mulher o mordia na barriga. Ele sentia seu sangue escorrer pelo corpo. O resto de sensibilidade que lhe restava, estava restrita a sensações bastante acentuadas como o deslizar do seu sangue pelo corpo, o som que sua carne fazia ao ser separada de seu corpo, o barulho do sangue ao tocar o chão, a sensação de ter dentes sendo enfiados em sua carne separando-a. Para ele, na situação em que estava, isso era poesia. Não hesitou em momento algum, mesmo quando o estado de choque o abandonou e já estava ciente do que estava sofrendo, só teve a ação de relaxar e aproveitar o suicídio com mais cara de homicídio que poderia imaginar para si. Não lutou, não hesitou, não gritou, só chorou. Era emoção. Era o que ele sempre quis, era digno. Era o momento pelo qual ele havia esperado tanto. Era o seu momento. E a última imagem que viu foi a de um par de pés por baixo da porta.

O chefe de polícia se atrasara, não poderia deixar de ter rosquinhas no painel de seu carro. Abraham viu, sentiu, encorajou-se e conseguiu. Hooke não se importou, Hooke não viu, Hooke sentiu. Mas se importaria, veria e sentiria. Era questão de tempo.

“Não há atividade cerebral que permaneça após dano semelhante ao recebido pelos três pacientes que aqui trato. Cogitar a possibilidade de atividade cerebral em um dos três corpos é absurdo e não reflete nenhuma possibilidade científica aparente a menos que se cogitasse um surto de mortos-vivos. E essa é uma realidade restrita ao cinema”. (Relatório pessoal do Dr. Abraham)

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